Portal de Notícias Administrável desenvolvido por Hotfix

Mundo

'Demorei 2 meses para contar à minha mãe que estava na Ucrânia': brasileiro da ONU conta como ajudou população em cidade destruída


Saviano Abreu negociou a retirada de civis que estavam na siderúrgica de Mariupol. Em entrevista ao g1, ele conta como são feitos os acordos e as dificuldades de atuar em uma zona de guerra. Guerra na Ucrânia: brasileiro integra missão humanitária da ONU
O brasileiro Saviano Abreu, de Minas Gerais, ficou dois meses na Ucrânia e, como funcionário da ONU, ajudou a negociar a retirada de centenas de civis que estavam na siderúrgica Azovstal, em Mariupol.

A cidade portuária de Mariupol, no sul da Ucrânia, foi palco de um dos conflitos mais duros da guerra. Cercados por mais de 2 meses, os habitantes ficaram sem acesso à água, suprimentos ou energia. A cidade ficou completamente destruída. A usina siderúrgica de Azovstal foi o último local de resistência antes da cidade ser totalmente tomada pelas tropas russas.

"A gente precisa saber exatamente o que está acontecendo em cada local, quantas pessoas são afetadas por determinada crise", disse.

Abreu entrou no Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês) da ONU em 2017. Durante muitos anos atuou em missões humanitárias no Quênia e na Somália, que são dois países que vivem conflitos há décadas. Atualmente, é porta-voz do OCHA e coordenador do setor de comunicação e gestão de informação.

Saviano Abreu, porta-voz da OCHA, escritório da ONU, durante uma coletiva de imprensa na Ucrânia

Arquivo pessoal

"Pode ser uma guerra, um conflito, mas também outros desastres, como ciclones, enchentes, secas, tudo isso faz parte do nosso trabalho também", explicou.

Após dois meses na Ucrânia, voltou para Nairóbi, no Quênia, onde mora. Ou melhor, morava: "Estou sendo transferido do Quênia para outro posto da ONU na Ucrânia."

Um dos focos principais de seu trabalho é negociar o acesso de ajuda humanitária e conseguir chegar até as pessoas que precisam dela. Sua equipe não faz nenhuma negociação visando o fim do conflito, apenas especificamente para ajudar a população que está sofrendo.

Saviano Abreu durante trabalho humanitário em Moçambique

Arquivo pessoal

"As guerras também têm leis. O direito humanitário internacional regulariza essa questão e as duas partes são obrigadas a facilitar esse acesso de forma segura. Infelizmente isso não acontece", explicou Abreu.

Acesso em Mariupol

"A situação em Mariupol é realmente desesperadora", disse Abreu. "São pessoas que ficaram sem eletricidade por três meses. Não podem abrir a torneira e pegar água, porque não tem água tratada. Quando a guerra começou, o frio era insuportável e as pessoas não tinham gás para aquecer o lugar onde estavam."

Grupo separatista divulga vídeo de bombardeio à usina de Azovstal

Ele sabe que milhares de pessoas ainda estão lá, mas não sabe dizer o número exato pois a ONU não tem acesso a todos os lugares.

Algumas pessoas, disse Abreu, estavam com medo de sair da usina de Azovstal: "Na primeira onda de retirada, havia pessoas que não quiseram sair. Elas perguntavam para onde elas seriam levadas. Havia muita especulação também."

Negociações humanitárias

Apesar de não poder revelar detalhes das negociações, Abreu explicou que elas acontecem em vários níveis hierárquicos. Um dos maiores avanços na opinião dele foi quando o secretário-geral da ONU, António Guterres, conversou diretamente com os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.

Na frente de batalha, Saviano Abreu negociou com ministros da Ucrânia e autoridades locais. Ele contou que muitas decisões são tomadas na hora do resgate: "Estamos falando de dois países em guerra, então nem tudo que se fala vai acontecer de verdade."

Fumaça acima da siderúrgica Azovstal e os portões destruídos do estaleiro Azov, em imagens de 19 de abril

Câmara Municipal de Mariupol / via AFP Photo

Em uma das tentativas de acessos às pessoas na usina de Azovstal, ele contou que ficou claro na hora de entrar que um dos acessos era um campo minado:

"Chegamos lá, um dos colegas, caminhou, olhou para um lado, para o outro e disse: "mas isso aqui está cheio de mina". Ele teve que voltar no mesmo passo que tinha dado, voltou para nossa posição. Teve que parar tudo, conversar de novo, chamar os dois governos e fechar esse acordo de que tinha que retirar. Todas as minas foram retiradas, esperamos um dia inteiro, no outro dia pudemos voltar."

Na entrevista, Abreu contou esse caso como se fosse só mais um contratempo no dia a dia das operações dele: "Não é uma coisa tão inusitada, não é tão fora do normal. Nós estamos preparados, temos treinamento para lidar com essas situações."

Controle do exército

Ele falou também sobre a dificuldade de se locomover em regiões de conflito e como é passar por pontos de controle do exército russo:

"Um ponto de controle é uma área cheia de militares com tanques de guerra que não deixam passar nada, inclusive nós, o pessoal da ONU", explicou. "Eles têm que ligar para a Rússia mesmo e perguntar se eles estão sabendo que a gente está passando, se nós temos autorização".

Ele comparou a forma de tratamento na Ucrânia com outros países em que ele atuou com ajuda humanitária: "Trabalhei na Somália durante um tempo, um país que está em guerra civil há décadas, lá tem uma resposta humanitária muito bem estabelecida".

Saviano Abreu tira foto de duas mulheres no Sudão

Arquivo pessoal

Mas nem sempre é assim. "Na Etiópia foi um pesadelo. Era horrível. Não tinha como fazer nada porque o governo do país não autorizava a nossa passagem."

Vida pessoal

"Pensei que quando estivesse com 40 anos ia deixar tudo isso por uma vida normal. Mas estou quase chegando lá e acho que não vai dar para parar agora," contou Abreu.

O mineiro fez 39 anos no dia 9 de maio, e estava em Zaporizhia, na Ucrânia. Seus colegas compraram um bolo, mas tiveram que comemorar o aniversário dentro de um bunker. As sirenes de ataque aéreo estavam tocando naquele dia. "Isso virou rotina nos meus aniversários. Acho que já me acostumei com isso", disse.

Ele apontou que levava uma vida "um pouco normal" na Ucrânia, não precisava ficar o tempo todo dentro de bunkers, que um sistema de alerta avisa dos riscos de bombardeio. Mas talvez ele só esteja acostumado a situações de risco: "Tem que estar preparado, sempre estou com uma mochila com comida."

Saviano Abreu com camiseta da OCHA-ONU em trabalho humanitário no Sudão

Arquivo pessoal

Saviano Abreu começou a carreira como jornalista no Brasil:

"Eu queria usar a informação para ajudar as pessoas", disse.

Depois, ele foi para a Espanha fazer um mestrado e acabou ingressando em uma ONG, onde trabalhou por 9 anos, até ser aprovado em um processo seletivo da ONU e ter sido alocado no Quênia.

"Conto o mínimo possível"

A família mora no Brasil e ele tenta mantê-los informados, mas contando o mínimo possível para que eles não fiquem tão preocupados.

"Tento não contar tudo que acontece nos lugares onde estou." Ele explicou que no trabalho anterior, na África, era mais fácil não contar o que ele estava fazendo, mas na Ucrânia ele não teve como esconder.

"No dia que eu contei que estava na Ucrânia já tinha quase dois meses que eu estava lá. Minha mãe perguntou: "Sério? O que você tá fazendo aí?"", contou Abreu.

Saviano Abreu caminha em estrada durante trabalho humanitário no Sudão

Arquivo pessoal

G1

Assine o Portal!

Receba as principais notícias em primeira mão assim que elas forem postadas!

Assinar Grátis!

Assine o Portal!

Receba as principais notícias em primeira mão assim que elas forem postadas!

Assinar Grátis!