Coação, manipulação e medo. Essa é uma triste realidade vivenciada por milhares de crianças e adolescentes vítimas de exploração e violência sexual. Só em 2023, um total de 1569 indivíduos menores de 18 anos sofreram algum tipo de crime sexual no Espírito Santo (média de 4,3 a cada dia). Até fevereiro deste ano, foram 210 vítimas registradas, um retrato cruel traduzido em números. Os dados são da Secretária de Estado de Segurança Pública (Sesp).
Segundo a Organização Mundial da Saúde, dos 204 milhões de crianças com menos de 18 anos, 9,6% sofrem exploração sexual, 22,9% são vítimas de abuso físico e 29,1% têm danos emocionais. Os dados mostram que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil – no entanto, esse número pode ser ainda maior, já que apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. O estudo ainda esclarece que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras.
De acordo com a psicóloga Elza Leite, o abuso e a exploração sexual são formas silenciosas e cruéis de violência contra crianças e adolescentes e mais de 80% do casos ocorrem dentro do seio familiar, geralmente praticados por pessoas queridas, da confiança da vítima, ou por conhecidos, o que torna o problema ainda mais complexo e velado.
"ABUSADOR TEM PERFIL SIM, A MAIORIA SÃO HOMENS, É UM CARA ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA. ELE SEMPRE ESTÁ MUITO INTERESSADO NA CRIANÇA, ELE É SEMPRE CARINHOSO, ELE É INVESTIGADOR, ELE CONHECE O AMBIENTE, ELE CONHECE OS PAIS, ELE CONHECE A DINÂMICA DA FAMÍLIA", EXPLICOU.
Em entrevista Elza destacou que o Brasil tem um índice alarmante de exploração sexual infantil, não só com o ato sexual, mas também com a comercialização de imagens de crianças nuas, sendo tocadas, expostas, principalmente as bem pequenas. "Abusadores e exploradores utilizam da vulnerabilidade da criança, da inocência da criança, para conseguir algum tipo de vantagem", explicou.
Para a especialista, a forma como o responsável lida após receber a informação muda o cenário da criança. "A mãe que fica sabendo que a filha sofreu abuso pelo padrasto, pelo avô, e não faz nada, faz com que a criança se sinta negligenciada. Essa coisa de não ser protegido, não ser pertencente, machuca muito, porque aciona gatilho de rejeição, de desprezo", explicou.
Segundo ela, a partir do momento que uma pessoa tem conhecimento que uma criança está sofrendo quaisquer tipo de violência e não toma alguma providência, ela está compactuando com algo que é um crime. "É preciso afastar a criança do abusador, fazer um acompanhamento, se possível, multidisciplinar com a criança, principalmente terapia. E partir para a estância legal, fazer denúncia na polícia, porque o abusador não vai abusar só de uma criança, ele abusa de várias", frisou
De acordo com a advogada especialista em Direito da Família, Gabriela Kuster, independente de ser um caso de abuso por parte de pessoas próximas ou desconhecidas a denúncia para a polícia deve ser imediata. Ele explicou que o abuso infantil ou de menor consiste em ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. "São dois termos para o mesmo crime e nesse caso, por conta da idade, não existe possibilidade de consentimento da vítima, sempre será considerado um abuso e um crime.
Além da Polícia é possível acionar o Conselho Tutelar do local ou fazer a denúncia anônima discando 100, de qualquer parte do Brasil, a ligação é gratuita, anônima e com atendimento 24 horas por todos os dias da semana. Gabriela ressaltou ainda sobre a importância de coletar provas como fotos, vídeos e testemunhas, mas deixou claro que isso não é uma regra.
"AO LEVANTAR A SUSPEITA E DENUNCIAR, MESMO QUE DE FORMA ANÔNIMA, VOCÊ DÁ A CRIANÇA A CHANCE DE QUE AS AUTORIDADES POSSAM IR AO LOCAL, REALIZAR EXAMES, FAZER A ESCUTA E PRESTAR SOCORRO. ENTÃO NÃO DEIXE DE DENUNCIAR POR NÃO TER PROVAS, MUITAS PROVAS PODEM SER ENCONTRADAS NO PRÓPRIO EXAME DO CORPO DESTA VÍTIMA".
Após a denúncia um processo criminal é instaurado contra o abusador, as investigações são abertas e a criança deve ser protegida. A especialista contou que o ideal é que o agressor seja preso imediatamente e isso dependerá da acusação e das provas no caso. "Caso não seja possível prendê-lo, ele será afastado da vítima que deverá ser acolhida por figura parental que esteja apta a protegê-la e garantir sua segurança. Na falta de um familiar, a criança será encaminhada a um abrigo do Estado.", explicou.
O Código Penal tipifica o abuso sexual infantil como estupro de vulnerável (art. 217-A), podendo atribuir punição de 8 a 15 anos de prisão. Já a exploração sexual, que consiste em submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, a pena é de 4 a 10 anos de prisão.
O efeito que o abuso sexual tem em suas vítimas vai para além dos danos físicos, afetando, principalmente, a saúde mental delas. De acordo com Elza, uma criança que tá sofrendo abuso sexual ou exploração sexual tem sua dignidade ferida, portanto, é natural que ela mude o seu comportamento.
"Ela pode regredir o comportamento, por exemplo, voltar a ser mais infantil, chupar dedo, querer mamadeira. Ela pode ser muito chorosa, apresentar um componente de agressividade. Ela pode reduzir a sua capacidade intelectual e a capacidade de aprendizagem na escola, começar a não conseguir prestar atenção, arrumar confusão com os colegas, etc".
É comum que essas crianças gostem de ficar isoladas, sempre demostrando um medo absurdo pelo abusador ou uma idolatria e admiração exagerada pelo mesmo. "Isso acontece porque ele seduz ela, ele se apresenta como alguém bonzinho, dá presente, brinquedo, doce. Se a criança chegar em casa, por exemplo, com alguma coisa que alguém da família, alguém conhecido de confiança não deu, a gente tem que começar a ligar um alerta".
Outra característica de alerta é a criança começar a ficar muito misteriosa, muito voltada para os celulares, para os jogos, além de problemas como insônia, perda de apetite ou compulsão alimentar. "Outro sinal que é muito evidente é a masturbação. A maioria das crianças, elas descobrem o próprio corpo e elas se tocam. Não buscando prazer, como o adulto faz. Mas a criança que foi abusada, às vezes ela tem uma compulsão masturbatória pra poder aliviar a ansiedade dela", contou.
Segundo Elza os impactos de um abuso são significativos e podem perdurar pela vida toda. A criança que sofre essa violação tende a crescer insegura, revoltada e, no futuro, também se tornar um abusador. "Essa vítima pode ter predisposição pra vícios, comportamentos de alto risco, pra agressividade. Se não for protegida e defendida, inclusive na instância legal, ela pode se voltar contra as pessoas que ficaram sabendo com muita revolta e se tornar depois um delinquente, questionar pai e mãe, pois a maioria dos abusos acontece dentro do seio familiar".