A chuva repentina encharca a camiseta e o short de Lucas (nome fictício). É noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2022. O garoto de 9 anos corre descalço pelas ruas de um bairro da Zona Oeste do Rio, em busca de abrigo, até chegar a uma padaria, onde entra afobado às 19h40. Assustada, a atendente olha para ele e pergunta: "O que você está fazendo aqui, menino?". Olhando para ela, Lucas responde: "A minha mãe foi embora com os meus irmãos, me abandonou".
Mudança numa carroça
Dez dias antes de chegar à padaria, o garoto estava jogando bola com colegas do bairro em um campinho comunitário. Ao voltar para a casa, de apenas um cômodo, estranhou a porta aberta. Os móveis haviam desaparecido. Lucas gritou pela mãe e pelos irmãos, em vão. Correu então até os vizinhos em busca de informações sobre a família. "Ué, eles se mudaram. O que você está fazendo aqui?", perguntou um deles — que também prestou depoimento dentro da investigação sobre o abandono da criança.
Após colher o relato da atendente, a polícia foi até a casa do menino e confirmou o sumiço da família. Por causa da chuva, o imóvel estava alagado. Um dos agentes foi em busca de testemunhas e descobriu detalhes da mudança: a mãe havia colocado os poucos pertences em uma carroça puxada por um cavalo, pegou os dois filhos mais novos, com idades inferiores à de Lucas, e foi embora.
Do pai, ninguém sabe, nem mesmo o menino. A mãe é dependente química, conhecida na vizinhança pela quantidade de filhos — 11 ou 12, a depender de quem conta. O número, porém, diverge do disponível no sistema de nascimentos e óbitos do Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ): lá, sete crianças estão registradas tendo ela como mãe.
A mulher tem pouco mais de 40 anos, mas, devido ao uso constante de drogas, os vizinhos a descrevem com a aparência de uma pessoa idosa. Ela morou em diferentes endereços no bairro — o último conhecido é um quartinho onde dormia com os filhos. De acordo com os vizinhos, ela era vítima de violência doméstica e tentava, constantemente, afastar-se do atual namorado.
Oito meses no abrigo
Sem encontrar os parentes de Lucas, a polícia acionou o Conselho Tutelar da região e levou o garoto, por ordem da Justiça, para o abrigo Vivendas da Fé, em Guaratiba, na Zona Oeste, onde ele ficou por oito meses. Há pouco mais de 20 dias, Lucas foi integrado a uma família acolhedora, modalidade na qual a criança ou adolescente fica temporariamente sob cuidados de guardiões, até voltar para os responsáveis, ser adotado ou completar 18 anos.
A Verônica Abreu, diretora do abrigo, e outros funcionários, Lucas disse ter quatro irmãos. Apesar da idade, lê e escreve muito mal. Não estava matriculado numa escola nem com a carteira de vacinação em dia. Também não tinha identidade, documento feito posteriormente pelos profissionais do local. Com as aulas oferecidas ali, ele foi, pouco a pouco, alfabetizado, e também recebeu as imunizações pendentes.
— Ele é um menino comprido, bem magrinho mesmo, daqueles que só se alimentam de macarrão com salsicha ou instantâneo. A pele é manchada, o olhar duro. A altura e a maturidade fazem com que ele pareça mais velho, como se tivesse bem mais de 9 anos. Mas é só uma criança — diz Verônica.
Em abril deste ano, depois de muita procura pelos parentes de Lucas, uma audiência com representantes do abrigo e da Justiça marcou a destituição do poder familiar e o encaminhamento da criança à adoção. Para não ficar no abrigo institucional, o menino, que havia feito aniversário naquele mesmo mês, foi levado para a casa dos guardiões, onde está atualmente.
— É sempre muito difícil contar a uma criança que ela não poderá voltar aos pais. Com ele, não foi diferente. Lembro que ele me olhou, chorou calado. A lágrima descia dos olhos e ele não dizia nenhuma palavra. Voltou para o abrigo transtornado, fez confusão com outros meninos. Foi a forma que ele encontrou de extravasar. A gente se abraçou depois, tentei acalmá-lo — revela a diretora.
O abandono de Lucas é um dos 168 registrados no Módulo Criança e Adolescente (MCA), ferramenta do Ministério Público do Rio (MP-RJ). Em dezembro do ano passado, última data disponível, a plataforma contabilizava 1.471 menores abrigados em todo o estado. Os principais motivos são negligência (no topo do ranking), abusos sexual, físico e psicológico e situação de rua.
O Globo