Ao longo dos meses de julho e agosto, uma agente do Ministério PĂșblico do CearĂĄ (MP-CE) foi duas vezes por dia, de manhã e de tarde, durante os dias Ășteis, à Prefeitura de Limoeiro do Norte para notificar o prefeito José Maria Lucena (PSB) acerca do processo que investiga sua ausĂȘncia do municĂpio. Em nenhuma das tentativas a técnica encontrou o prefeito em seu gabinete.
Esta ausĂȘncia, porém, não é novidade. A Ășltima vez que Lucena, de 78 anos, foi visto em pĂșblico foi no dia 12 de janeiro de 2023, portanto, hĂĄ oito meses. Desde então, o gestor não aparece em compromissos oficiais nem promove audiĂȘncias com vereadores ou aliados. O sumiço levou o Ministério PĂșblico a abrir um processo administrativo para investigar o caso.
Segundo assessores e advogados de Lucena, o prefeito estĂĄ realizando tratamento de hemodiĂĄlise em Fortaleza, a 200 quilômetros de Limoeiro do Norte, trĂȘs vezes por semana, para combater problemas renais.
Apesar disso, o gestor não solicitou licença médica e seus assessores garantem que Lucena estĂĄ cumprindo plenamente suas funções de chefe do Executivo do municĂpio de 55 mil habitantes, um polo regional do Vale do Jaguaribe.
"Esses rumores jĂĄ são de muito tempo, no ano passado jĂĄ existiam rumores de que ele não tava bem, e para falar bem a verdade ninguém o via aqui pela cidade não", afirmou ao g1 um morador de Limoeiro do Norte, que não quis se identificar. "Desde janeiro, a gente jĂĄ vĂȘ com uma força maior e esse falatório de que ele não tĂĄ na cidade, de que ele tĂĄ doente, que tem outras pessoas à frente da gestão", completa.
HĂĄ relatos de que Lucena estĂĄ hĂĄ meses internado e os Ășnicos com acesso a ele são os secretĂĄrios municipais, que para despachar com o prefeito vão a Fortaleza. Os vereadores de Limoeiro do Norte chegaram a protocolar na Câmara pedidos oficiais para reuniões com Lucena, mas não tiveram resposta.
Registro da Ășltima aparição pĂșblica de Lucena, disponibilizado no site da prefeitura de Limoeiro do Norte — Foto: Reprodução
A oposição aponta que a ausĂȘncia do prefeito viola a Lei Orgânica do municĂpio, que funciona como uma espécie de "Constituição" da cidade. De acordo com a lei, o prefeito não pode se ausentar do municĂpio por mais de 15 dias sem permissão da Câmara dos Vereadores, sob pena de perda do mandato.
No processo administrativo conduzido pelo MP, também é apontado que, embora o Lucena esteja teoricamente ausente, o Executivo municipal continua enviando projetos para a Câmara - o que levanta o questionamento de quem estĂĄ exercendo as funções do prefeito.
Se estes atos administrativos estiverem sendo realizados por terceiros, o caso poderia configurar o crime de usurpação de função pĂșblica, como previsto no Código Penal.
DenĂșncia no Ministério PĂșblico
José Maria Lucena, conhecido em Limoeiro do Norte como Dr. Zé Maria, foi eleito prefeito em 2016 e reeleito em 2020.
Sua famĂlia tem forte envolvimento polĂtica: uma das filhas, Juliana Lucena, é deputada estadual pelo PT; outra filha, Andrea Lucena, é secretĂĄria de Governo de Limoeiro; a esposa de Zé Maria, Maria Erivan, é ex-prefeita da cidade e atual secretĂĄria de AssistĂȘncia Social.
José Maria Lucena e sua filha ao lado, a deputada estadual Juliana Lucena, com secretĂĄrios de Limoeiro do Norte — Foto: Reprodução
Para averiguar o funcionamento da gestão, o promotor de Limoeiro do Norte, Felipe Carvalho de Aguiar, convocou membros da gestão para oitivas no dia 30 de março. Lucena participou apenas por videochamada.
Na mesma sessão, quando perguntado do andamento das atividades da prefeitura, das obras e das secretarias, segundo o MP, o prefeito "nada relatou" e pediu que o órgão solicitasse estas informações à Secretaria de Governo da prefeitura, comandada pela filha de Lucena, Andrea Lucena.
"É evidente que a gestão da municipalidade não se encontra em situação de normalidade, haja vista a caracterização de ausĂȘncia do prefeito no trato com os diversos atores que rotineiramente se relacionam, despacham, postulam e necessitam de atendimento pelo Chefe do Poder Executivo. [...] Ao que se vislumbra, sempre hĂĄ neste ano de 2023, interpostas pessoas para despachar ou dar andamento na gestão do MunicĂpio ao invés do próprio prefeito exercendo suas funções", aponta o relatório do MP-CE assinado pelo procurador Felipe Carvalho de Aguiar.
JĂĄ nas redes sociais da prefeitura, é possĂvel notar que os atos de gestão são encabeçados pelos secretĂĄrios da cidade, que acompanham as obras, participam dos eventos oficiais e representam Limoeiro do Norte em atividades fora do municĂpio.
José Maria Lucena e secretĂĄrios em foto publicada nas suas redes sociais — Foto: Reprodução
Até mesmo algumas prerrogativas do prefeito foram oficialmente delegadas a secretĂĄrios. Em agosto, por exemplo, a prefeitura nomeou dezenas de concursados. A nomeação, porém, foi feita pelo secretĂĄrio de Gestão de ConvĂȘnios, Recursos Humanos e Patrimoniais, que recebeu poderes para tal por decreto.
Após a sessão virtual em março, o Ministério PĂșblico marcou uma nova sessão com Lucena, desta vez presencial, em Limoeiro do Norte, para o dia 8 de agosto. Os advogados de Lucena, no entanto, informaram que ele não poderia comparecer por estar em tratamento em Fortaleza.
Nas eleições de 2020, José Maria Lucena e sua vice, a odontóloga Dilmara Amaral, receberam 18.465 votos, cerca de 53% dos votos vĂĄlidos de Limoeiro do Norte. A relação entre prefeito e vice, no entanto, azedou logo no inĂcio do mandato e os dois romperam.
O rompimento seria o principal motivo para o prefeito e seus aliados resistirem a solicitar a licença na Câmara dos Vereadores, uma vez que após o afastamento de Lucena, Dilmara assumiria a prefeitura.
Ao g1, vice-prefeita afirmou que os dois romperam ainda em maio de 2021, isto é, no quinto mĂȘs do mandato. De acordo com Dilmara, não houve motivo aparente para o rompimento.
A vice-prefeita de Limoeiro do Norte, Dilmara Amaral, e seu pai, João Dilmar, que é ex-prefeito da cidade — Foto: Reprodução
"Desde esta época, eu não consegui, nem eu nem meu pai, que meu pai também é um polĂtico aqui antigo, foi prefeito trĂȘs vezes, e nós não conseguimos conversar com o Dr. Zé Maria. Nem com ele nem com a filha nem com ninguém que estava no comando da gestão", afirma a vice-prefeita.
Quando questionada pelo g1 sobre por que as duas partes não chegaram a um entendimento, Dilmara afirmou que não sabe o motivo do recuo.
"Eu estou como vice-prefeita apenas com o salĂĄrio de vice-prefeita e pronto", diz. "Eu me faço presente nos eventos cĂvicos do municĂpio porque não deixo esse vĂĄcuo. Mas eu não sou convidada para nada."
Movimentação na Câmara de Vereadores
No dia 11 de setembro, o Ministério PĂșblico emitiu um novo ofĂcio convidando a defesa de José Maria Lucena a se manifestar sobre as denĂșncias de que o prefeito estaria ausente hĂĄ meses, sem exercer suas funções e sem se licenciar, antes que "sejam tomadas as medidas judiciais cabĂveis".
Câmara de Vereadores de Limoeiro do Norte tem poder de dar licença ao prefeito e de cassĂĄ-lo — Foto: Reprodução
O MP jĂĄ apontou que a ausĂȘncia do prefeito do municĂpio por mais de 15 dias sem permissão dos vereadores – no caso de Limoeiro, uma ausĂȘncia que jĂĄ seria de meses - é uma infração polĂtico-administrativa que deve ser julgada na Câmara municipal.
Em junho, a o órgão legislativo municipal arquivou os documentos que o Ministério PĂșblico enviou sobre a investigação, indicando que não hĂĄ processo oficial contra Lucena em andamento.
O g1 entrou em contato com o presidente da Câmara dos Vereadores de Limoeiro do Norte, Darlyson de Lima Mendes, mais conhecido como PaxĂĄ, para entender como a Câmara analisa a situação do prefeito, no entanto, a reportagem não obteve resposta.
G1