Nem mesmo os 500 anos sem escravidão e os 200 anos de independência conseguiram amenizar os impactos de um problema que teve início ainda no século XVI
Em streamings, desfiles, novelas e até em animações, a negritude tem conquistado, passo a passo, a tão sonhada representatividade. O cenário não é favorável. Prova disso são as incontáveis retaliações que surgem cada vez que essa representatividade avança em um campo diferente.
Quer receber nossas notícias pelo WhatsApp? Clique aqui e participe do nosso grupo de notícias!
A escolha de uma atriz negra para representar a personagem Ariel é uma prova disso. Quem diria que a princesa de Walt Disney, moradora de um reino tão distante, poderia ser alvo de tantas críticas (e deslikes) por algo tão simples como a cor da pele. É preciso lembrar que se trata de um desenho?
Apesar de recente, a situação sofrida pela atriz, cantora e, agora, Pequena Sereia, Halle Bailey, não começa em 2022. A discussão se aprofunda quando se busca as raízes desse problema: escravidão, racismo estrutural e desigualdade racial.
O processo de escravidão no Brasil teve início no século XVI, ali por volta dos anos 1530 e 1550. Negros africanos foram brutalmente agredidos, escravizados e trazidos a força para terras, hoje, brasileiras.
Este trágico "enredo" não foi curto. Ele durou mais de 300 anos, sendo "oficialmente" encerrado em 1888 - a escolha do termo oficialmente se dá pela assinatura da Lei Áurea que colocava fim à escravatura em 13 de maio de 1888.
Apesar do "documento", não foi no 14 de maio de 1888 que a elite brasileira decidiu "acolher" negros africanos dentro de seus casarões. Em 2022 ainda não é tão diferente.
Apesar das comemorações verdes e amarelas, a matemática é simples e não falha. O Brasil passou mais tempo com a escravidão do que com a independência e o resultado desse cálculo pode ser percebido até hoje na desigualdade racial.
Clique aqui e siga o RegionalEs no instagram
No Espírito Santo, por exemplo, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a desigualdade racial impacta nos níveis de pobreza, no emprego e nos salários da população.
No ano passado, considerando o valor de R$ 486 per capita, a taxa de pobreza das pessoas brancas no Estado era de 17,1%. Entre as negras ou pardas saltava para 31,3%. No país, a proporção de pessoas pobres era de 18,6% entre os brancos e praticamente o dobro entre negros (34,5%) e pardos (38,4%).
Um dos meios encontrados para dar início a esta conversa importante não só para a população negra é por meio da juventude negra que, infelizmente, está presente nas graves estatísticas da segurança pública estadual.
Segundo o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 53,35% dos homicídios registrados no Espírito Santo entre os anos de 2009 e 2019 foram de homens de 15 a 29 anos. Deste total, os negros foram vítimas de quase 78% dos crimes.
Para o presidente do Fórum Estadual da Juventude Negra do Espírito Santo (Fejunes), Filipe Gutemberg, envolver os jovens nessa discussão é primordial, pois são eles que estão na "linha de frente" do problema.
"Quando a gente fala de extermínio aqui no Brasil, é importante lembrar que as vítimas majoritariamente são as juventudes negras. É importantíssimo fazer o debate político com quem sofre esse extermínio. Temos que unir a juventude negra e fazer esse diálogo direto com o papel de conscientização política", afirmou.
O evento se concentrou no Centro de Vitória e contou com a presença de militantes do movimento negro e demais organizações para debaterem e combaterem a presença da juventude negra nas prejudiciais estatísticas capixabas.
"A marcha contra o extermínio é uma forma de atrair essa juventude porque ali é um espaço onde damos poder de fala para esses jovens que vão falar sobre seus sentimentos e reivindicações. É o momento em que a juventude tem protagonismo e espaço de fala, essa é a melhor maneira de atrair o jovem, dando espaço digno a ele", apontou o presidente do Fejunes.
Por mais que sejam graves todos os dados que remontam ao Brasil explorado pela coroa portuguesa nos séculos passados, o diretor de relações étnico-raciais do Sindicato dos(as) Trabalhadores(as) em Educação Pública do Espírito Santo (Sindiupes), Adriano Albertino, classifica esse período como fundamental para a compreensão dos déficits da atualidade.
"Trata-se de um país onde o racismo faz parte da estrutura e da origem. Não existiria o Brasil sem a história de exploração dos povos africanos e indígenas. Essa história não podemos perder de vista se queremos entender o hoje", explicou.
"Se temos um país gigantesco cuja riqueza não é acessível para todos na mesma proporção, é porque nós vivemos séculos de um sistema escravagista. Esses séculos fizeram com que o país fosse forjado nesse sistema e toda a segregação social de hoje, tem uma origem na segregação racial iniciada do passado."
Para que a educação consiga, de fato, ser uma arma transformadora, Albertino afirma que é preciso rever alguns conceitos, implantados no Brasil em relação ao conhecimento das salas de aula.
"Eu vejo a educação como a principal possibilidade de construir uma nova narrativa de país. Nós ainda não constituímos a potencialidade que o Brasil pode ser e a educação é essa possibilidade. Porém, através de um currículo escolar que não aceite só a matriz curricular europeia, mas também a africana e a indígena", defendeu o diretor.
"A educação sem sombra de dúvidas é o melhor caminho para que nós consigamos superar esse grande mal, que é o racismo que temos arraigado na sociedade brasileira. Precisamos discutir mais sobre as questões raciais, principalmente sobre todas as consequências que o racismo traz, não somente para os negros", disse.
"Uma das maiores armas do racismo é a naturalização dos atos racistas. É muito comum ver pessoas dizendo que sempre chamaram amigos e parentes de "neguinho" e nunca houve uma revolta e que agora dizem que "tudo é racismo". Na verdade, sempre foi racismo, só que as pessoas, por medo de se sentirem sozinhas ou mesmo excluídas, não se revoltavam com aquilo no passado", reforçou o advogado.
Ampliando o contexto e considerando o histórico dos antepassados da população negra brasileira, é possível perceber que a experiência de viver em uma terra independente não foi sentida por toda a sociedade.
Para a coordenadora do Movimento Negro Unificado do Espírito Santo (MNU/ES), Vanda Vieira, nem mesmo o próprio processo de independência abrangeu os diferentes "Brasis".
"A independência não é para todos, nós ainda não conseguimos conquistar a nossa independência total e isso só vai acontecer quando acabar o racismo e, principalmente, se houver um compromisso de promover a igualdade para que a gente tenha chance de chegar à equidade racial", explicou.
"A data em si, para o povo negro, acaba não sendo tão simbólica porque a independência se deu em 1822, mas os negros não tinham o que comemorar, até porque a escravidão cresceu ainda mais após a independência", apontou o advogado.
Não foi da noite para o dia que essa realidade mudou. Até porque, pouco tempo depois, em 1824, nasce a primeira constituição brasileira. O que poderia ser um avanço para os negros, funcionou como um verdadeiro retrocesso, segundo explica Emerson.
"A independência aconteceu, mas não foi favorável ao povo negro. Ao exemplo da Constituição de 1824 que deixava claro que o negro não era considerado um ser humano, ele era tratado como um ser movente. Então, nossa própria lei, nossa primeira carta magna, reforça essa diferença entre negros e brancos."
"Nós tivemos vários avanços, mas ainda não podemos comemorar porque as dificuldades continuam as mesmas, e mais do que isso, a burguesia continua querendo destruir a população negra. Ela não se conforma que os negros consigam pensar formas de avanço", apontou.
Em relação aos 200 anos da independência, a presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Espírito Santo (Cepir-ES), Fátima Tolentino, defende que, mesmo com esses avanços, é preciso estar atento para que a sociedade não caia no retrocesso.
"Embora tenhamos muitas conquistas, a gente vive em um Estado que não aplica as políticas afirmativas, que são algumas das conquistas também do movimento negro. Tivemos mais de 500 anos do processo de escravidão, e não queremos perder tudo o que conquistamos até hoje", explicou.
"A gente luta pela reafirmação da identidade negra, pela valorização do povo negro, lutamos pela igualdade racial e compreendemos que nesses 200 anos não temos que estar mais nos mapas da violência e da fome", ressaltou a presidenta da Cepir.
"Na igualdade racial todo mundo ganha. O preto, o branco, o indígena, o cigano, o pomerano e assim por diante. Nossa luta do conselho é por igualdade e criação de oportunidades para a população negra nas mais diferentes esferas da sociedade."
A presidenta do Cepir reforça que o Estado possui papel fundamental na erradicação do racismo e na promoção da equidade racial. As ações vão desde proposição de orçamento à punição devida em casos de racismo e injúria racial.
"O papel do Estado é responsabilidade social e racial com o povo negro, é ter orçamento nas políticas públicas de investimento e, para além de tudo isso, é a questão da punidade. O racismo acontece porque não há punição, as pessoas não são punidas devidamente pelos atos e práticas de racismo, porque a partir do momento que isso acontecer, o racismo pode acabar."