Caderno com anotações de dívidas, ameaças e carteiras de trabalho recolhidas pelos patrões: veja os detalhes da desumanização sofridas
"Os trabalhadores tinham que fazer suas necessidades fisiológicas em meio à plantação de café, sem a mínima condição de higiene ou privacidade, onde também realizavam as refeições, sujeitos a todos os tipos de intempéries, de cócoras ou sentados no chão".
O trecho acima foi retirado de uma Ação Civil Pública, realizada pela Procuradoria do Trabalho de São Mateus, Norte do Espírito Santo, após serem identificados 80 trabalhadores em uma lavoura de café na cidade de Vila Valério, em 2021. Na época, os empregados, inclusive, estavam contaminados com a covid-19.
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Estavam sob condições insalubres, sem receber salários e obrigados a trabalharem pelas dívidas feitas com os patrões.
Esses são alguns detalhes da escravidão contemporânea em que dezenas de trabalhadores, em sua maioria imigrantes de outros estados, ficam reféns até que uma denúncia seja feita e chegue às autoridades.
Neste sábado, 28 de janeiro, é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Feridos, explorados e amontoados, é dessa forma que pessoas distantes de seus direitos vivem por meses, obrigadas a trabalhar sem condições dignas de seres humanos.
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Em 2023, o Espírito Santo ficou entre os 10 estados do Brasil com mais resgates de pessoas em situação análoga a trabalho escravo: foram 83 resgates, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
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O número quase triplicou em relação ao ano de 2022, quando foram 30 resgates em todo o território capixaba.
Para o superintendente do MTE no Espírito Santo, Alcimar Candeias, o trabalho análogo a de escravo acontece, principalmente, na zona rural e na cultura cafeeira.
"Adotamos a fiscalização rural como prioridade porque, quando as pessoas sentem a presença do Estado, elas se manifestam, denunciam. Na lavoura, geralmente, tem três ou quatro trabalhando. O problema é no momento da colheita, quando o trabalho aumenta e, então, o número passa para 40, 50 trabalhadores e, infelizmente, muitas vezes sem condições adequadas para o trabalho", conta.
O Espírito Santo tem como principal atividade agrícola a cafeicultura, que gera em torno de 400 mil empregos diretos e indiretos.
Do total da produção, 73% dos produtores capixabas são de base familiar, com o tamanho médio das propriedades em 8 hectares, de acordo com o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper).
No entanto, entre os mais de 400 mil hectares destinados à produção de café em território capixaba, também existem casos de exploração do trabalhador.
Segundo dados por municípios enviados pelo MTE-ES, dos 83 resgates no Espírito Santo, de pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão, 65 foram em lavouras de café, o que representa 78% do total.
Muitas vezes, famílias inteiras imigrantes de outros estados acabam por ficarem presas em lavouras, sem direito de ir ou vir, sem receber salários dignos e sem ter conhecimento de que a situação em que se encontram se enquadra em escravidão contemporânea.
É o que diz o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo (MPT), Estanislau Tallon Bozi:
"A maioria é imigrante, vem de outros estados para trabalhar na colheita, como da Bahia, Alagoas e Minas Gerais. Eles vêm em busca de melhores condições, com a promessa de carteira assinada. Mas, ao chegar, têm a liberdade cerceada, dificuldade de acesso e locomoção, vigilância ostensiva, trabalho exaustivo, condição degradante e alojamentos insalubres", informa.
O registro acima mostra um dos alojamentos do caso relatado no início da reportagem, de 2021, em Vila Valério, mas que reflete o que ainda ocorre no Espírito Santo.
O documento de denúncia do caso descreve todas as características da desumanização desses trabalhadores, que ficam presos a uma realidade escravista.
Além disso, os trabalhadores resgatados na ocasião tinham parte do (pouco) salário descontado, cerca de R$ 800 em relação à alimentação e passagem de volta para os estados de origem.
Por falta de local adequado para realizar as refeições, se alimentavam nas lavouras e os patrões só serviam almoço e janta, sem a opção de café da manhã antes de iniciar a jornada de trabalho.
"Os denunciantes relatam que estão tendo suas dignidades reduzidas. Estão com suas carteiras de trabalho e valores salariais retidos pelo empregador. Alegam, ainda, que estão sendo ameaçados e intimidados de forma a trabalhem até o fim da colheita, caso isso não aconteça, os mesmos não terão passagem de retorno para suas cidades de origem. Estão sendo alojados mulheres, homens e casais no mesmo alojamento, o que tem causado grande constrangimento aos trabalhadores", diz parte do documento.
O procurador do MPT, Vitor Borges, acompanha os casos de perto, inclusive o de Vila Valério, utilizado nessa reportagem como exemplo do que se repete em outras regiões do estado, em diferentes proporções.
"Atualmente, o trabalho escravo contemporâneo não se resume à figura do trabalho forçado, mas abrange a questão do trabalho degradante e, também, quando houver jornada exaustiva e o sistema de servidão por dívida", explica.
No caso de Vila Valério, as dívidas eram anotadas em um caderno, com os nomes, os produtos e os valores. A situação não é isolada.
Por que "escravidão contemporânea"?
O termo "contemporâneo" pode parecer um eufemismo para falar das condições desumanas vivenciadas por esses trabalhadores.
No entanto, a escravidão no Brasil foi abolida pela Lei Áurea em 1888. Ou seja, foi proibido possuir pessoas, comprando ou ganhando, para servirem de escravas.
Mas, na contemporaneidade, há outras formas de domínio e são nessas brechas que mora a escravidão contemporânea, de acordo com a professora do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Adriana Pereira Campos.
"Antes, era assim: eu tenho direito de explorar essa pessoa porque tenho um recibo de que a comprei. Mas, hoje, existem outras maneiras, como as dívidas. A escravidão ´é isso, quando você separa o homem dos meios de produção e ele passa a ser parte, é coisificado, é uma mercadoria", explica.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) explica que, quando as pessoas são resgatadas, são feitas as rescisões dos contratos, ou seja, os patrões são obrigados a pagar os trabalhadores.
Às pessoas resgatadas em uma lavoura de café em Vila Valério, por exemplo, foram pagos cerca de R$ 460 mil. Uma ação foi ajuizada para que o investigado cumpra as obrigações de regularização do ambiente de trabalho e pague por dano moral coletivo e individual para cada trabalhador.
Segundo o superintendente regional do trabalho, Alcimar Candeias, há casos em que o proprietário do local também pode responder criminalmente.
"O que a gente faz é notificar a empresa ou o proprietário para regularizar o trabalho. Por exemplo, se for uma obra, a gente embarga ou interdita. Analogia à escravidão é crime e os patrões podem responder criminalmente por isso, se for caracterizado o trabalho precário. Alguns casos ultrapassam o muro do trato administrativo e requer o tratamento criminal", conta.
Dinheiro de danos morais foi destinado para filme sobre escravidão
O documentário "Servidão", recentemente lançado nos cinemas, recebeu parte de recursos vindos de uma Ação Civil Pública no Espírito Santo, ajuizada pelo MPT contra uma fazenda em São Domingos do Norte.
No local, foram resgatados 17 trabalhadores que desempenhavam funções em condições degradantes.
O valor de R$ 160 mil, parte dos danos morais coletivos, foi repassado para ser utilizado exclusivamente na divulgação do documentário.
O procurador Vitor Borges, que fez a destinação, informou que a outra parte foi destinada para a assistência social do município.
"Entramos com ação por dano moral coletivo partindo da premissa que essa prática viola os valores coletivos. A escravidão contemporânea para ser combatida envolve além da questão repressiva, mas também a conscientização da população para denunciar. Então, destinamos parte do valor para a divulgação do documentário e outra parte para a assistência social do município", contou.
Apesar de ser o ambiente onde mais se encontra trabalhadores em situação análoga a de escravo, não é só na lavoura de café em que pessoas são submetidas à condições degradantes.
O procurador-chefe do MPT, Estanislau Tallon Bozi, aponta casos identificados até na Grande Vitória e fala sobre a necessidade de ter um estado presente para combater a escravidão contemporânea.
"Já tivemos casos em Vitória de resgates feitos na construção civil, mulheres em trabalho doméstico também. Mas o perfil geral é de trabalhador homem, imigrante, em lavoura de café. Essas pessoas não têm acesso aos serviços públicos. Por falta de conhecimento, não sabem seus direitos. Essas situações acontecem porque o Estado faltou. É preciso ter presença", afirma.
A professora Adriana Pereira Campos também fala da importância da denúncia e da fiscalização, para que a sociedade fique mais próxima desses trabalhadores.
"Quanto mais atrasada a localidade e quanto menos a presença do Estado, não vai ter denúncia. Então, todo tipo de violência é praticada. É preciso reprimir esse tipo de situação, ter a presença do Estado. Não está ligado só à lavoura de café, do tipo de produção, mas sim ao fato de uma sociedade desprotegida para a realização de denúncias", analisa.
No Espírito Santo, em 2023, foram recebidas 49 denúncias de trabalho análogo a de escravo recebidas pelo Ministério Público do Trabalho.
O cidadão ainda pode acessar o site do Ministério Público do Trabalho e realizar sua denúncia formalmente (clique aqui).
Há também o MPT Pardal, um aplicativo de denúncias do MPT disponível gratuitamente para dispositivos Android ou iOS.
Além disso, no site do Ministério do Trabalho e Emprego há uma área reservada somente para as denúncias de trabalho escravo (clique aqui). Pelo mesmo site, é possível obter dados sobre o cenário da escravidão no Brasil e por estados.
A Secretaria Estadual de Direitos Humanos também recebe denúncias, que podem ser feitas pelo [email protected] ou pelo WhatsApp (27) 99297-2776. Todas as denúncias também podem acontecer de forma anônima.
As denúncias já mudaram as vidas de 990 pessoas no Espírito Santo, entre os anos de 1995 e 2023, resgatadas da escravidão contemporânea.